Sempre fui apaixonado por arquitetura. Nasci vendo perspectivas e projetos. Quando comecei a Faculdade, minha paixão aumentou. Desfrutei ao máximo das disciplinas de projeto (que nos ofereciam liberdade total de criação), às vezes priorizando a forma à função. Acreditava que o arquiteto era um artista – porém, mais completo do que os outros, pois era obrigado a lidar com uma série de questões técnicas para conceber suas obras.
Em Portugal, onde cursei um ano letivo, os arquitetos são respeitadíssimos, têm voz ativa na sociedade. Lá, Arquitetura é um acessório das cidades, sendo sua função servir e prezar pelo espaço urbano. Tudo isso sempre me fascinou.
Logo que foi possível comecei a estagiar. Trabalhei num grande escritório de Arquitetura do Rio, que priorizava o foco no mercado imobiliário. Sonhava participar de projetos de grande porte. Porém, aos poucos fui me deparando com uma realidade assustadora. Tanto nesse quanto nos outros dois escritórios em que atuei, descobri o terrível posicionamento deste profissional no mercado .
O arquiteto médio, além de ser muito mal remunerado e não possuir ‘carteira assinada’, ainda precisa lidar com prazos mínimos e aturar noites viradas para conseguir cumprir suas metas. Percebi que arquitetos mais experientes viviam esta mesma situação. Alguns bastante talentosos, cumprindo uma média de 12 horas por dia, são remunerados no mesmo patamar que um engenheiro recém-formado.
Até então acreditava que o problema estava na chefia dos escritórios, por falta de experiência administrativa e gerencial. Mas existe uma máquina muito maior por trás. Os projetos chegam através dos incorporadores, empreendedores que compram um terreno para construir e vender unidades habitacionais ou comerciais. Essas empresas, em geral, são dominadas por engenheiros, economistas ou administradores. No Brasil, a maior parte deles é oriundo de construtoras.
Hoje, o incorporador recebe o terreno de um corretor e encaminha ao escritório de arquitetura para fazer o que se chama de “Estudo de massa”, que é um pré-projeto para verificar, de acordo com a legislação que rege o terreno, o que cabe de unidades e a metragem quadrada de área de construção. Dados suficientes para calcularem por quanto poderão vender e qual será o custo daquela obra. Essas informações os fazem chegar à conclusão, juntamente com outros inputs, se o negócio é rentável ou não.
Esse estudo dura cerca de duas semanas, num escritório de médio porte. A responsabilidade desses dados é imensa, pois orienta a decisão dos investidores. O incrível é descobrir que são feitos ‘no risco’ – o que significa que os arquitetos só serão remunerados se a incorporadora o viabilizar - conseguir comprar o terreno E SE aquele projeto for levado adiante.
Os arquitetos estão investindo seu tempo e suor, então, deveriam receber proporcional ao lucro, ou, se o incorporador quiser correr o risco sozinho, remunerá-los pelos serviços.
A culpa dessa situação não é só dos incorporadores. É dos próprios arquitetos. O aumento da competição reflete na submissão dos escritórios aos clientes, tanto particulares quanto jurídicos: “Lei da oferta e da procura”.
Mas essas atitudes são uma imensa desvalorização da nossa principal atividade: projetar. Se você não paga o projeto, para que serve um arquiteto? Para que cinco anos de faculdade? Não é o tempo que se toma nem o trabalho que dá que deve ser mensurado para determinar a remuneração, e sim o conhecimento e o custo imensurável de uma ideia.
Um médico cobra por hora a consulta. Se fizessem como os arquitetos, diriam que a consulta é de graça e especificariam os remédios e os exames onde seriam efetivamente remunerados. Na realidade, em uma hora de consulta médica, você está pagando pelo conhecimento daquele profissional. Ele sabe diagnosticar suas doenças. Assim como os arquitetos sabem diagnosticar seus anseios, colocar no papel seus sonhos, verificar o que cabe e o que não cabe no espaço e no bolso do cliente. Esse conhecimento, difícil de mensurar, é que deveria ser a base para a remuneração.
Quando os escritórios de arquitetura se destroem entre si, estão desvalorizando seus próprios trabalhos e formação. Para isso é fundamental que exista um órgão regulador que puna quem atua dessa forma. Mas nosso órgão atual é o CREA - o mesmo dos engenheiros e agrônomos. Nossa participação neste conselho é pífia, comparada a dos engenheiros. Obviamente, estes que detém o poder podem facilmente dominar o mercado da construção civil.
O recém criado CRA (Conselho Regional dos Arquitetos) teoricamente seria o começo da solução para nossos problemas. Espero, porém, que essa mudança não seja ainda mais prejudicial ao profissional de arquitetura. Apesar de tudo, ter um registro no CREA ainda permite alguma credibilidade ao arquiteto, equiparado ao engenheiro civil.
O IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), após anos de ausência e silêncio, mas ainda em tempo, vem mudando alguns cenários. Depois da eleição do respeitado Sérgio Magalhães como presidente, e com uma equipe de arquitetos engajados e competentes, vem conseguindo impor um posicionamento e vencendo algumas batalhas importantes. Conseguiram conscientizar o poder público da importância de aproveitar os jogos olímpicos para revitalizar uma área degradada da cidade como a Zona Portuária. Promoveram concursos de grande porte, tanto para esses equipamentos olímpicos, quanto para urbanização de favelas.
Construções e intervenções públicas há anos estavam sendo feitas de forma ‘fechada’ por meio de cartas-convite, alegações de “notório saber” ou indicações. Essa democratização fará com que os projetos escolhidos sejam de melhor qualidade, gerando inúmeros ganhos para a cidade, mas principalmente, cultura arquitetônica e visão crítica.
Essas mudanças são fundamentais, mas precisamos pensar além. A maioria dos cursos de arquitetura são oriundos da escola de Belas Artes. Isso nos causa alguns problemas, pois arquiteto não é artista há muito tempo. O que fazemos hoje é basicamente negócio. Temos um cliente, um produto e um prazo a cumprir. Mas quando ingressamos no mercado não temos consciência do que nos espera. Não sabemos nossa importância, nossa responsabilidade nem nosso valor.
Tive a oportunidade de participar da reformulação do currículo como representante dos alunos na UFRJ, que foi um grande avanço. Melhorou-se muito. Mas hoje vejo que deveríamos ter pensado mais à frente - a inserção e a conscientização do estudante no mercado, suas obrigações e deveres para a defesa da profissão. Tudo isso deveria ser discutido ao longo dos cursos, juntamente com disciplinas voltadas para atuação, gestão e empreendedorismo. Hoje já é possível achar pós-graduações com foco em arquitetura, como por exemplo, pelo IBMEC (parceria com o IAB), o que comprova a necessidade de se inserir melhor o arquiteto no mercado.
Sei bem que já temos muito conteúdo para absorver em cinco anos, mas sei também que existem muitas disciplinas defasadas. Talvez assim, juntamente com um conselho atuante (se fiscalizado e respeitado) e com um Instituto com voz na sociedade, aos poucos poderemos competir com engenheiros e administradores, melhorando a cidade, os produtos e valorizando o projeto e a criatividade.
|